quinta-feira, 23 de maio de 2013

Coisas da irmã Lúcia


UM  MILAGRE

Quando não havia medicina a sério, os santos curavam as doenças. Mas também tinham especialidades. Suponho que não havia ainda o conceito de "internista". A julgar pela composição dessa pequena parte da corte celeste, os maiores taumaturgos só tratavam aflições particulares: o catarro, a gosma, o reumático, as dores de cabeça, o bom sucesso dos partos, de quando em quando uma constipação ou uma pneumonia e por aí fora. De resto, todos respeitavam o território do vizinho. Se fossem, por exemplo, pedir alívio a Santo Eusébio para um achaque de estômago, Santo Eusébio, que era um perito em cãibras, passava a incumbência a um colega. O "comercialismo" ainda não chegara ao Paraíso; e não chegou até o inominável século XIX em que as coisas se baralharam um pouco. 
Os santos não recebiam dinheiro em troca dos seus serviços, recebiam devoção: um Credo, um Padre Nosso, uma Salve Rainha, um Rosário inteiro, uma dúzia de missas, conforme a gravidade do mal e a intensidade das dores. Convinha, aliás, que o penitente lhes rezasse de manhã e à noite para estabelecer e conservar uma espécie de conhecimento pessoal que os fizesse, num aperto, agir depressa. Para a classe média, os santos substituíam o Serviço Nacional de Saúde. Mas não consta dos tratados, nem dos breviários, que eles se interessassem por economia e finanças. Não se encontra nenhuma dessas benéficas criaturas preocupada com o défice, a dívida e o "crescimento" (excepto, evidentemente, em anos maus, com o crescimento das culturas), mesmo porque os políticos, que se diziam "liberais", blasfemavam e atormentavam S.S. Pio IX. 
Foi preciso o acto destemido e original do sr. Presidente da República (decerto encorajado por sua mulher), desprezando a hierarquia do Céu, para que Nossa Senhora, a intercessora máxima junto do Altíssimo, resolvesse conceder à troika e ao governo a "inspiração" para se entenderem e ao CDS a humildade e a paciência para se pôr de lado. O dr. Cavaco, como devia, agradeceu em público esta divina benesse, que Portugal inteiro espera que não pare de se renovar. E, de caminho, o dr. Cavaco descobriu uma nova fonte de influência, que lhe é hoje muito necessária. Dois dias depois, já invocava S. Jorge em prol da Pátria, apesar de esse S. Jorge, bispo de Alexandria, ser também o patrono da Inglaterra e um homem excessivamente zeloso que provocou uma guerra civil local. De qualquer maneira, demonstrada a incapacidade desta República laica e, se calhar, ateia para se governar, o acesso do dr. Cavaco ao Omnipotente é sem sombra de dúvida uma garantia de ventura e paz.

Vasco Pulido Valente - Público

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