UM MILAGRE
Quando não havia medicina a sério, os santos curavam as
doenças. Mas também tinham especialidades. Suponho que não havia ainda o
conceito de "internista". A julgar pela composição dessa pequena
parte da corte celeste, os maiores taumaturgos só tratavam aflições
particulares: o catarro, a gosma, o reumático, as dores de cabeça, o bom
sucesso dos partos, de quando em quando uma constipação ou uma pneumonia e por
aí fora. De resto, todos respeitavam o território do vizinho. Se fossem, por
exemplo, pedir alívio a Santo Eusébio para um achaque de estômago, Santo
Eusébio, que era um perito em cãibras, passava a incumbência a um colega. O
"comercialismo" ainda não chegara ao Paraíso; e não chegou até o
inominável século XIX em que as coisas se baralharam um pouco.
Os santos não recebiam dinheiro em troca dos seus serviços,
recebiam devoção: um Credo, um Padre Nosso, uma Salve Rainha, um Rosário
inteiro, uma dúzia de missas, conforme a gravidade do mal e a intensidade das
dores. Convinha, aliás, que o penitente lhes rezasse de manhã e à noite para
estabelecer e conservar uma espécie de conhecimento pessoal que os fizesse, num
aperto, agir depressa. Para a classe média, os santos substituíam o Serviço
Nacional de Saúde. Mas não consta dos tratados, nem dos breviários, que eles se
interessassem por economia e finanças. Não se encontra nenhuma dessas benéficas
criaturas preocupada com o défice, a dívida e o "crescimento"
(excepto, evidentemente, em anos maus, com o crescimento das culturas), mesmo
porque os políticos, que se diziam "liberais", blasfemavam e
atormentavam S.S. Pio IX.
Foi preciso o acto destemido e original do sr. Presidente da
República (decerto encorajado por sua mulher), desprezando a hierarquia do Céu,
para que Nossa Senhora, a intercessora máxima junto do Altíssimo, resolvesse
conceder à troika e ao governo a "inspiração" para se entenderem e ao
CDS a humildade e a paciência para se pôr de lado. O dr. Cavaco, como devia,
agradeceu em público esta divina benesse, que Portugal inteiro espera que não
pare de se renovar. E, de caminho, o dr. Cavaco descobriu uma nova fonte de
influência, que lhe é hoje muito necessária. Dois dias depois, já invocava S.
Jorge em prol da Pátria, apesar de esse S. Jorge, bispo de Alexandria, ser
também o patrono da Inglaterra e um homem excessivamente zeloso que provocou
uma guerra civil local. De qualquer maneira, demonstrada a incapacidade desta
República laica e, se calhar, ateia para se governar, o acesso do dr. Cavaco ao
Omnipotente é sem sombra de dúvida uma garantia de ventura e paz.
Vasco Pulido Valente - Público
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