UMA NOVA ERA
Nasci numa família comunista e cheguei a adulto durante a
guerra das colónias, o que naturalmente não me inclinou para o nacionalismo ou
sequer para qualquer espécie de patriotismo ardente. Mas de qualquer maneira,
quando o sr. Schäuble fala de Portugal como falaria de um protectorado
longínquo e recalcitrante, não consigo escapar a um estado de fúria e de
frustração que julguei que nunca conscientemente teria. A Alemanha e a troika,
muito para lá da "austeridade", estão a inspirar (talvez sem perceber)
sentimentos de um radicalismo que tarde ou cedo mudarão um país, na aparência
calmo e resignado a um destino de miséria. A humilhação que se acumula já fez
desaparecer a mais leve ideia de responsabilidade pela catástrofe em que nos
metemos (ou em que nos meteram). Ficou só o ódio.
E nem sequer um ódio cerimonioso e disfarçado. A vida
pública começa a tomar um "tom" muito semelhante às piores fases do
PREC. Comentadores da televisão, que eram pessoas em geral pacatas, passaram de
repente a oradores de comício, que propõem, ou aceitam, mesmo o indizível para
se verem livres do governo e da intervenção estrangeira. Nos debates, cada
partido (ou representante de um partido) estoira de indignação perante as
"verdades", frequentemente razoáveis, da outra parte. Os jornais não
hesitam em distorcer ou inventar os factos e acabaram num coro de queixas quase
completamente inútil. As sessões da Assembleia da República parecem as sessões
da última câmara monárquica na sua agonia. Não se sabe quem manda no governo ou
se o governo realmente manda. E o dr. Cavaco arranjou para si um "exílio
interior", que o protege das baixas realidades do mundo.
O ministro das Finanças altera impostos, taxas,
contribuições (parece que até hoje 65 vezes), para se conformar aos
"conselhos" da troika, que são os da Alemanha. O próprio Ricardo
Salgado (do Banco Espírito Santo) declara com impecável clareza: "Não há
nada absolutamente garantido"; e de facto não há - nem o presente nem o
futuro -, a não ser que Portugal caiu e, a seguir, foi empurrado para um buraco
sem fundo. E, como sempre, o desespero inspira e multiplica a mentira: a
mentira sistemática ou a mentira ocasional. Toda a gente mente, com raiva e com
maldade ou pura e simplesmente por inconsciência. Portugal entrou numa nova era
de pobreza, de conflito e de isolamento: e essa era promete durar.
Vasco Pulido Valente - Público
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