UMA OFENSA
O dr. Cavaco - que ele me desculpe se por acaso o entristeço
- não é a rainha de Inglaterra. Toda a legitimidade que tem veio de uma
eleição, que não perdeu por um fio, cujo carácter político não se pode
discutir. E a legitimidade do seu mandato depende da opinião política dos
portugueses. Não há distinção alguma entre o chefe do Estado (criatura
aparentemente intocável) e o dr. Cavaco, peça importante e activa do regime que
o país deve dia a dia julgar e criticar, se bem o entender. Numa república
democrática, ninguém está acima das partes, de um simples comentador de jornal
ou de televisão ao homem expressamente escolhido para garantir o "regular
funcionamento" de instituições em que só manda através de intermediários,
mas de que é de qualquer maneira o último responsável.
Ora o dr. Cavaco resolveu "solicitar" à
Procuradoria-Geral da República que abrisse um inquérito às declarações do
jornalista Miguel Sousa Tavares, por serem "injuriosas" e "uma
ofensa à sua honra" de chefe do Estado. Não vou repetir essa perigosa e
famigerada palavra. Mas gostaria de observar que a reacção, quase instantânea,
de Belém é, antes de mais nada, o sinal de uma enorme fraqueza. Nenhum
Presidente, seguro de si mesmo e dos seus propósitos, com uma popularidade
acima dos 60 por cento, se iria importar com o que acha ou não acha o dr.
Miguel Sousa Tavares. Centenas de políticos com certeza que ouviram pior e,
pelo menos, os três predecessores do dr. Cavaco. Para chegar ao grau de
susceptibilidade a que o dr. Cavaco chegou é preciso uma grande e horrível
aflição.
Os portugueses partilham com ele essa aflição. Sucede que
não a queriam partilhar e que foi exactamente por essa razão que o elegeram.
Para ele se arrepelar com os males da Pátria - desde a austeridade às
dissidências do Governo - enquanto eles tratavam da sua pobre vida e tentavam
resistir à miséria. O que Miguel Sousa Tavares chama ou não chama ao Presidente
não engorda, não emagrece, não paga contas, nem impostos. Levantar esta questão
no meio da balbúrdia e da miséria do país será sempre tomado como um mau sinal.
Escuso de explicar ao Presidente que a dignidade em que ele tanto insiste
sofrerá, talvez mortalmente, com um "inquérito" ou um processo a
Miguel Sousa Tavares. A verdadeira dignidade consistiria em não o ouvir. Agora,
infelizmente, é tarde.
Vasco Pulido Valente - Público
Um artista que não concorda com o sítio escolhido pelos palhaços para colocar a batatinha. A bem do faro cuide do nariz.
Sem comentários:
Enviar um comentário