segunda-feira, 27 de maio de 2013

Quotidiano do indigenato



UMA OFENSA

O dr. Cavaco - que ele me desculpe se por acaso o entristeço - não é a rainha de Inglaterra. Toda a legitimidade que tem veio de uma eleição, que não perdeu por um fio, cujo carácter político não se pode discutir. E a legitimidade do seu mandato depende da opinião política dos portugueses. Não há distinção alguma entre o chefe do Estado (criatura aparentemente intocável) e o dr. Cavaco, peça importante e activa do regime que o país deve dia a dia julgar e criticar, se bem o entender. Numa república democrática, ninguém está acima das partes, de um simples comentador de jornal ou de televisão ao homem expressamente escolhido para garantir o "regular funcionamento" de instituições em que só manda através de intermediários, mas de que é de qualquer maneira o último responsável.
Ora o dr. Cavaco resolveu "solicitar" à Procuradoria-Geral da República que abrisse um inquérito às declarações do jornalista Miguel Sousa Tavares, por serem "injuriosas" e "uma ofensa à sua honra" de chefe do Estado. Não vou repetir essa perigosa e famigerada palavra. Mas gostaria de observar que a reacção, quase instantânea, de Belém é, antes de mais nada, o sinal de uma enorme fraqueza. Nenhum Presidente, seguro de si mesmo e dos seus propósitos, com uma popularidade acima dos 60 por cento, se iria importar com o que acha ou não acha o dr. Miguel Sousa Tavares. Centenas de políticos com certeza que ouviram pior e, pelo menos, os três predecessores do dr. Cavaco. Para chegar ao grau de susceptibilidade a que o dr. Cavaco chegou é preciso uma grande e horrível aflição.
Os portugueses partilham com ele essa aflição. Sucede que não a queriam partilhar e que foi exactamente por essa razão que o elegeram. Para ele se arrepelar com os males da Pátria - desde a austeridade às dissidências do Governo - enquanto eles tratavam da sua pobre vida e tentavam resistir à miséria. O que Miguel Sousa Tavares chama ou não chama ao Presidente não engorda, não emagrece, não paga contas, nem impostos. Levantar esta questão no meio da balbúrdia e da miséria do país será sempre tomado como um mau sinal. Escuso de explicar ao Presidente que a dignidade em que ele tanto insiste sofrerá, talvez mortalmente, com um "inquérito" ou um processo a Miguel Sousa Tavares. A verdadeira dignidade consistiria em não o ouvir. Agora, infelizmente, é tarde.

Vasco Pulido Valente - Público


Um artista que não concorda com o sítio escolhido pelos palhaços para colocar a batatinha. A bem do faro cuide do nariz

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