ENQUANTO O NOVO PAPA NÃO CHEGA
"Quando fui surpreendido pelo gesto que fará de Bento XVI
outra vez Joseph Ratzinger, a minha primeira reacção foi a de que era um gesto
profundamente moderno. Mais: que a decisão do Papa era coerente com um
pontificado que, se lhe quisermos encontrar uma lógica profunda, fica marcado
pela luta pela modernidade - e contra essa sua inimiga que é a pós-modernidade.
Fazia todo o sentido para um João Paulo II, um Papa místico
e que se salvara miraculosamente de um atentado, manter-se no seu lugar mesmo
em grande sofrimento, mesmo cumprindo penosamente os seus deveres, dando com
isso mais uma prova de coragem física mesmo na velhice. Da mesma forma faz todo
o sentido que Bento XVI, um Papa que fez do casamento entre a Fé e a Razão a
motivação do seu mandato, renuncie ao perceber, racionalmente, que daqui por
diante a Medicina lhe iria prolongar a vida sem lhe devolver a energia que
sentia necessária à missão. Teve por isso a coragem moral de renunciar.
Está a fazê-lo reafirmando, nas suas últimas homílias e
orações, algumas das linhas de força do seu papado - nomeadamente ao denunciar,
na última oração do Angelus, as tentações que atraem o homem para a ilusão de
um falso bem -, mas fê-lo sobretudo ao ter fincado bem as raízes da Igreja na
sua Doutrina, e esta na mensagem e no exemplo de um homem, Jesus Cristo. Ele
reforçou um discurso da Igreja que, como notava D. Manuel Clemente, bispo do
Porto, numa entrevista a propósito da sua eleição, tinha vindo a evoluir para
se tornar mais "cristocêntrico", ou seja, um discurso que
"aquilo que propõe não provém de uma ideologia abstracta, mas do exemplo
de um homem".
João Paulo II, com a encíclica Veritatis Splendor, já
apelara à racionalidade como elemento indispensável da Fé, mas Bento XVI
incorporou essa racionalidade de forma plena, fazendo do diálogo entre Fé e
Razão uma questão central da sua mensagem - tão ou mais central quanto o Papa
sente que a batalha mais importante da Igreja se trava numa Europa descristianizada.
Fez da racionalidade o terreno comum onde podia dialogar com os não crentes -
fizera-o em polémicas com Habemas e Flores d"Arcais ainda bispo, fê-lo
como Papa em intervenções tão importantes como a que preparou para ser lida na
Universidade La Sapienza - e, também, onde podia conversar com os crentes de
outras religiões - como no famoso discurso em Ratisbona. A racionalidade foi
também o seu ponto de partida contra o relativismo: "O relativo não é
moderno, é pós-moderno, é a factura que se está a pagar às grandes desilusões
do século XX", como antecipou D. Manuel Clemente. Aos cardeais, antes da
eleição, o ainda Joseph Ratzinger tinha notado que "o relativismo, isto é,
o deixar-se levar "para aqui ou para ali por qualquer vento ou
doutrina" parece a única atitude aceitável nos tempos que correm",
pelo que "toma corpo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada
como definitivo e que deixa tudo ao critério do próprio ego e dos seus
desejos".
Com Bento XVI a Igreja mostrou que se pode ser moderna sem
ir atrás do que apresenta como moderno mas, muitas vezes, não passa de uma
moda. A sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, é nesse domínio um documento
notável quer ao abordar a plenitude do amor erótico, afirmando que "se o
homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança
apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade", quer ao
defender a ideia da caridade cristã sem renegar o papel social dos Estados
modernos.
O Papa prosseguiu sempre este caminho com a determinação de
"não se vergar perante a ditadura das opiniões, mas antes agir a partir do
conhecimento interior, ainda que isso traga aborrecimentos", como ele
próprio disse. Mas como homem da Doutrina, que também era, provavelmente o
melhor e o mais culto de todos, Bento XVI era capaz de distinguir o essencial
do acessório e, por isso, deu alguns passos seguros. A sua resignação, que é
também uma demonstração de humildade e uma chamada de atenção para a condição
humana de um Papa - e para a "condição humana" da Igreja -, tem mesmo
força suficiente para um dia nos fazer recordar o velho teólogo a quem todos
prognosticaram um papado que não ficaria na História.
Não sendo crente, aquilo que me interessa e me interpela em
Bento XVI é precisamente a sua capacidade de olhar para a sociedade
contemporânea de uma forma que é moderna sem ter perdido as referências da
tradição e os ensinamentos da experiência.
Em contrapartida não me interessaria, e estou certo que não
interessaria aos crentes, uma Igreja mimética e submetida às novas regras das
opiniões dominantes nos espaços públicos. Aprecio critérios diferentes, não
estou disponível para aceitar a ideia de que os únicos critérios válidos são os
definidos pelas maiorias, uma ideia que Bento XVI também combateu com energia.
Não me interessam as verdades únicas, mas interessa-me a ideia de que "o
homem tem de procurar a verdade", pois "ele é capaz da verdade".
Tal como me interessa a ideia de que praticar a tolerância não é contraditório
com promover "valores constantes que fizeram grande a humanidade".
Num terreno mais concreto, mais próximo da nossa realidade,
interessam-me as reflexões de Bento XVI sobre os limites do progresso e a ideia
de que, para conseguirmos ter um planeta sustentável, devemos estar preparados
para a renúncia a alguns bens materiais, o mesmo é dizer bens de consumo. Ou
ainda a sua preocupação, ambiental e económica, mas fundada em motivações
éticas, com este nosso "viver à custa das gerações vindouras", algo
que é tanto verdade para o esgotamento de recursos naturais como para a
acumulação de dívidas pelos Estados.
Não espero da Igreja, deste Papa ou do próximo, soluções
concretas para os nossos problemas concretos, não espero que façam coro com os
nossos credores ou com as nossas dores, mas espero muito daquilo que encontrei
sempre que li Bento XVI: um olhar moderno ancorado numa Tradição e numa
Doutrina, um olhar corajosamente avesso à facilidade e à tentação da
popularidade."
José Manuel Fernandes - PÚBLICO
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