Em tempos estranhos e de tanta tolice...
NÓS, AS CRIATURAS
É um prazer ver um rebanho. Esta semana vimos um com uma
ovelha negra ainda na fase da adolescência. Os borregos saltitavam como ómegas.
O verbo inglês é gambol. Em português como é? Os gatos e as raposas também
fazem estas levitações instantâneas, sem balanço de qualquer espécie.
Só há duzentos e tal anos é que a grande maioria de nós não
vive com os animais como vizinhos, inquilinos e, sobretudo, guardiões,
garantindo a nossa sobrevivência. Aqui ao pé de nós temos o compadrio dos
pombos, a indignação de gansos, o desprezo dos melros, a concorrência selvagem
dos patos, as marchas dos perdigotos atrás das perdizes. Há cães abandonados -
alguns sobrevivendo como fantasmas brancos - e outros que encontraram donos
melhores e mais fiéis do que os primeiros.
Estão escandalosamente escondidos dos nossos olhares os
animais que mais matamos e comemos: os frangos, os porcos, os novilhos, os
coelhos, os peixes até. Se os víssemos vivos, mais vezes do que vemos (quase
nunca), se calhar não seríamos tão vorazes. O rebanho que seguimos é a melhor
máquina aparadora de relva que já vi. Os pastores e o cães são amigos das
ovelhas: elas têm uma vontade geral e estúpida, como Rousseau inventou
inteligente e erradamente, para as pessoas.
A Primavera é uma reabertura não só de plantas como de
bichos, pessoas e climas. Junta todos os seres vivos na altura. É pena termos
aprendido, entretanto, a distinguir entre eles. E entre eles e nós, como
criaturas.
Miguel Esteves Cardoso - Público
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