O RIDÍCULO MATA
Disse há dias que o Ocidente se tinha mostrado cauteloso e,
até certo ponto, desinteressado da guerra civil da Síria. Não me lembrei da
França, que se julga desde o princípio do século XIX a entidade redentora da
humanidade. Não só, segundo a ortodoxia, ensinou a liberdade aos povos, com a
grande revolução de 1789-1794 (que, por acaso suprimiu qualquer vestígio de
liberdade), mas serviu de modelo a Lenine e aos bolcheviques no glorioso golpe
de Estado de 1917. Esta fé continua a ser essencial à cultura política do
Estado e da "inteligência". Infelizmente, depois de 1815 e da derrota
definitiva de Napoleão, a França nunca foi mais do que uma potência de terceira
ordem; e desde o fim da II Guerra perdeu mesmo a "supremacia"
cultural, que sempre lhe dava algum consolo e importância.
Hoje quase desapareceu. Apesar de uma literatura
incomparável, pouca gente lê a sua língua. Pátria da "haute" e da
"baixa" cuisine, é agora, a seguir à América, a maior consumidora per
capita da fast food do McDonalds. E o resto nem merece discussão. O que
aparentemente deixa a França sem meios para afirmar a sua "grandeza".
Neste compreensível desespero, o socialista François Hollande, a quem falta a
pose e a oratória do general de Gaulle (e também o talento político), resolveu
ressuscitar o velho belicismo do país: uma escolha tradicional, mas sem dúvida
um pouco estranha, porque a França não ganha uma guerra de 1918 para cá. De
qualquer maneira, o terrível Hollande, no meio de uma economia em estagnação,
já se meteu na insurreição contra Kadhafi e nos conflitos do Mali. Com certeza
que lhe soube bem esta espécie de "glória".
E a Síria não lhe podia ficar indiferente. Primeiro, porque
foi um mandato francês (de facto, uma colónia com outro nome). Segundo, porque
as barbaridades de Assad manifestamente chamavam "a grande redentora da
humanidade". Enquanto as verdadeiras potências (a América, a Rússia, a
China e a Inglaterra) tentavam não se imiscuir numa guerra que não compreendiam
e que envolve uma apreciável parte do Médio Oriente muçulmano (o Irão, o
Iraque, o Qatar e a Arábia Saudita) - Hollande proclamou o dever de punir Assad
e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, pregava na
televisão a necessidade de usar a "força". Como os franceses dizem, o
ridículo mata.
Vasco Pulido Valente - Público
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