SEM PASSADO E SEM FUTURO
Depois de arrasado este país pela "Europa" e pelos
políticos, fica ainda alguma memória política útil para recomeçar uma vida
normal? Para não passar do século XX, porque o século XIX não se recomenda, é
preciso ver se a herança da I República nos deixou tradições que possam unir e
servir os portugueses. Não deixou com certeza uma tradição democrática ou de
reverência pelo direito estabelecido. Não deixou também uma tradição de
"fomento" económico (como à época se dizia). Mesmo com o intervalo da
Ditadura, não sobra desse tempo tumultuoso e violento mais do que a separação
do Estado e da Igreja, um ponto que hoje ninguém discute e ninguém quer mudar.
Originária de uma revolução acabou com um pronunciamento militar, que nos
trouxe, para nosso mal, o dr. Oliveira Salazar.
O dr. Oliveira Salazar não se esforçou muito para tornar
Portugal menos pobre, até porque sabia (e não se enganava) que um Portugal sem
fome e sem miséria o punha em risco. Liquidou pelas mesmas razões qualquer
vestígio de liberdade (fosse ela inócua) e, ajudado pela polícia secreta, criou
na classe média uma inclinação tenaz para a irresponsabilidade e a
subserviência, que persistem até hoje no funcionalismo e nos partidos. A
Ditadura caiu, como a República perante um pronunciamento militar, já quando
Salazar morrera e Marcelo Caetano governava numa situação desesperada. Do
regime, que um e outro se esforçaram por perpetuar, nada se aproveita; e os
portugueses colectivamente esqueceram essa longa tragédia que se abateu sobre
eles. Nem a direita gosta de se lembrar ou ser lembrada do seu triste reino em
Portugal.
Não vale a pena falar do PREC, que desapareceu depressa. Mas
vale a pena falar dos 30 anos de democracia a seguir a 1976. Dos quatro
partidos que emergiram na nova democracia, nenhum conseguiu criar a sua
história ou a sua própria memória. As reviravoltas do CDS não permitiram que
emergisse a mais leve forma de continuidade. No PSD, Sá Carneiro é usado de
quando em quando para sossego dos "notáveis" da casa, mas por si só
não chega para fundar uma tradição ou sequer um estilo. Cavaco, sendo um
indivíduo sem o menor atractivo humano, não convenceu os portugueses, tirando
um grupinho de fiéis que se agarra a ele por ambição. O PC, que se transformou
num arcaísmo, na prática não existe. E o PS, na falta de Soares, que nos livrou
do PREC, foi pouco a pouco corrompido por um bando de espertalhões, que não se
distinguem bem dos seus colegas do PSD e do CDS. Se houver um dia a necessidade
de pôr em pé um novo regime político, onde o vamos buscar?
Vasco Pulido Valente - Público
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