Há coisas que apenas alguns eleitos conseguem alcançar. Como a salvação de um moribundo contribuiu para a mudança de rumo na vida dos sul-africanos:
O mundo inteiro festejou os 95 anos de Mandela, um homem que
esteve longos anos preso e que, uma vez libertado, pela pressão internacional,
acabou com o apartheid, graças também ao Presidente De Klerk, que finalmente
compreendeu, contra a pressão dos militares, que sem a sua libertação era
impossível acabar com o isolamento internacional a que a África do Sul estava
sujeita pela ONU e quase todos os países do mundo.
O azar e a circunstância de o meu filho, João Soares, ter
tido um desastre de avião, com outros portugueses, e serem depois levados a fim
de serem tratados num hospital em Pretória. O meu filho era o único que estava
à beira da morte, o que levou a minha mulher, filha e a minha nora, bem como o
meu sobrinho, médico, Eduardo Barroso e o meu médico Daniel de Matos a viajar
de imediato para Pretória.
Eu era, nessa altura, Presidente da República e tinha, nesse
mesmo dia, que partir numa visita oficial a dois países europeus (Hungria e
Holanda). Por isso não pude ir logo, como desejava.
Mas quando regressei a Lisboa fui para Pretória, apesar de,
por decisão da ONU, nenhuma autoridade política dever ir à África do Sul.
Contudo, não hesitei, porque acima de tudo, estava a vida do meu filho.
Fui. E os sul-africanos tiraram algum partido disso. Tinha à
minha espera no aeroporto o ministro dos Negócios Estrangeiros, Pik Botha, que
me apresentou cumprimentos do Presidente De Klerk. Fui imediatamente para o
hospital e o médico director, excelente, explicou-me, com grande rigor, que o
meu filho estava em coma, com poucas possibilidades de viver. Foi terrível para
mim, como para toda a família. Contudo, dias depois, começou a dar sinais de
vida.
Foi então que recebi de novo a visita de Pik Botha, que me
transmitiu um convite de De Klerk para almoçar. Entendi dever ir. É aqui que volto a Mandela, que continuava preso. De Klerk
disse-me que não queria a África do Sul isolada do mundo. Desejava, de seguida,
acabar com o apartheid. Respondi-lhe: "Isso é impossível." Mas
disse-me tencionar, nos próximos dias, pôr em liberdade outros presos
políticos. Citei-lhe o exemplo espanhol de Adolfo Suarez, então
primeiro-ministro, que também quis abrir a porta a todos os exilados excepto ao
líder do Partido Comunista espanhol, Santiago Carrillo.
De Klerk ficou a pensar. E no dia em que, dadas as melhoras
do meu filho, regressei a Lisboa, o ministro Pik Botha esteve de novo no
aeroporto à minha espera e disse-me: "Hoje à noite vamos libertar dez
prisioneiros políticos, como verá quando chegar a Lisboa. Mas não
Mandela." Respondi-lhe: "É bom, mas não consegue resolver o problema
do isolamento da África do Sul." Passaram as semanas até que Mandela foi
finalmente libertado. Foi uma explosão de alegria universal. Nelson Mandela
algum tempo mais tarde foi eleito Presidente da República.
Mário Soares - DN
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