O PROBLEMA DA ESQUERDA
O principal problema da esquerda é um problema teórico. O
proletariado desapareceu e acabou por se tornar numa pequena-burguesia, sem
aspirações subversivas mas com aspirações de estatuto e consumo, enquanto a
grande massa dos trabalhadores desceu a uma categoria heterogénea e confusa,
mais parecida com os "miseráveis" de Vítor Hugo ou com os sans-culottes
da Revolução Francesa do que com o apoio certo e seguro que em Paris como em
St. Petersburgo levou ao poder a classe média. Por outro lado, os capitalistas
também já não aparecem à vista do público e são hoje uma entidade obscura e
vaga que a esquerda trata por "banca usurária",
"especuladores", "casino" financeiro e epítetos desta
natureza sem utilidade prática ou significação precisa. Do patrão que estava
ali, como em Soeiro Pereira Gomes, com o seu charuto e o seu automóvel, o
"explorador" emigrou para uma nuvem, às vezes longínqua, às vezes
próxima, nunca exactamente identificável.
A esquerda precisa de um programa e de objectivos. Mas, pela
maneira como ela própria fala, esse programa e a imensidão de objectivos que
dele derivam, que servem talvez para criticar parcialmente o passado, não
servem para guia de acção. Nem manifestações, nem greves, nem uma ou várias
greves gerais garantem a mudança do Governo ou do regime político e nenhuma
delas contribui para o fim da miséria, que de ano em ano cresce. Ainda por cima,
excepto o ocasional maluquinho, pensa seriamente em autarcia ou em
desenvolvimento endógeno. Numa palavra, a esquerda depende do capital e,
sobretudo, do capital estrangeiro, que desconfia dela e não porá cá dentro um
único vintém, se não o obrigarem a essa absurda operação. Sem diabo e sem um
salvador, a esquerda voltará pouco a pouco ao século XIX, onde verdadeiramente
pertence.
Não por acaso o Papa Francisco se chamou Francisco - queria
chamar a si os "pobrezinhos" - e não por acaso ressuscitou o diabo,
por quem a Igreja se desinteressara, e que em 2013 ele recomeçou a perseguir a
golpes de exorcismos. A esquerda portuguesa não tem na sua velha tradição esta
arma terrível. Mas tem, em contrapartida, a arma (um pouco heterodoxa, admito)
da revolução mundial: primeiro, na Europa; a seguir na América, e, lá para o
fim, na Ásia. A duração do projecto permite indefinidamente a esperança e,
enquanto espera, à esquerda cá do sítio com certeza que não faltará uma longa
série de querelas para se ocupar. E se divertir.
Vasco Pulido Valente - Público
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