IMPUNIDADE
O dr. Miguel Sousa Tavares não pediu desculpa ao político
Cavaco Silva, mas reconheceu a "excessiva" veemência com que se lhe
referiu numa entrevista ao Jornal de Negócios e reiterou o seu respeito pelo
chefe do Estado, símbolo da unidade nacional. Quem descobrir a mais leve
diferença entre o político Cavaco Silva e o chefe do Estado ganha com certeza
um prémio de lucidez. De qualquer maneira, o exemplo de Miguel Sousa Tavares
foi seguido pela generalidade do país. O dr. Cavaco, na sua encarnação de político
ou de chefe do Estado, entrou e saiu do Jamor sem se dar por isso: o público
ficou calado e quieto, presumivelmente penetrado pela reverência que o Código
Penal declara a única atitude lícita perante tão alta personagem. E até no
"encontro" do dr. Soares, que em princípio reunia a esquerda inteira,
uma vaga tentativa de manifestação contra o dr. Cavaco acabou abafada pela
maioria cordata e grave da audiência.
Desde o princípio, o maior erro deste Governo foi não
ajustar contas com o passado, a pretexto de que não queria perder tempo com
velhas querelas. Por assim dizer, apagou a responsabilidade de toda a gente que
tinha levado Portugal à situação desesperada de 2011. O nosso coração é bom e
muito inclinado a não tocar no sossego e no bom nome do próximo. É um coração
de ouro que não gosta de afligir ninguém. E, como não gosta, os portugueses
ficaram sem saber ao certo como se acumulou a enorme dívida, soberana e outra,
que nos sufoca; quem deliberadamente a fez por sua própria força e autoridade;
e que espécie de razões presidiram ao exercício (corrupção? oportunismo
eleitoral? incompetência? puro desleixo?). A julgar pela televisão e pelos
jornais parece que um castigo do Altíssimo se abateu sobre nós para nos punir
de inconfessáveis pecados.
Entretanto, cai interminavelmente do céu uma chuva de
números, que de resto mudam dia a dia e em que o cidadão vulgar deixou de
acreditar. Durante o glorioso mandato deste Governo, os portugueses, pelo
menos, conseguiram aprimorar a sua educação cívica, que se resume numa frase:
não devemos confiar em nada e contar com nada. Um ministro pode perfeitamente
decidir isto ou aquilo e, em meia dúzia de horas, decidir exactamente o
contrário. O primeiro-ministro ora nos garante a felicidade para depois de
amanhã, ora um futuro de miséria para 30 anos. Os profetas--comentadores,
deliciados de se exibirem e subitamente sem excepção com uma licenciatura em
Economia, discutem o extravagante dr. Gaspar, ou a iminência do apocalipse, ou
a urgentíssima necessidade do "crescimento", que se tornou um
fenómeno tão mítico como um unicórnio. E nós continuamos passivos no meio desta
feira de inocentes, sem a menor ideia do que nos vai suceder. Mas sem queixas.
Portugal é o país da impunidade.
Vasco Pulido Valente - Público
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