sábado, 8 de junho de 2013

Em forma de manha


IMPUNIDADE

O dr. Miguel Sousa Tavares não pediu desculpa ao político Cavaco Silva, mas reconheceu a "excessiva" veemência com que se lhe referiu numa entrevista ao Jornal de Negócios e reiterou o seu respeito pelo chefe do Estado, símbolo da unidade nacional. Quem descobrir a mais leve diferença entre o político Cavaco Silva e o chefe do Estado ganha com certeza um prémio de lucidez. De qualquer maneira, o exemplo de Miguel Sousa Tavares foi seguido pela generalidade do país. O dr. Cavaco, na sua encarnação de político ou de chefe do Estado, entrou e saiu do Jamor sem se dar por isso: o público ficou calado e quieto, presumivelmente penetrado pela reverência que o Código Penal declara a única atitude lícita perante tão alta personagem. E até no "encontro" do dr. Soares, que em princípio reunia a esquerda inteira, uma vaga tentativa de manifestação contra o dr. Cavaco acabou abafada pela maioria cordata e grave da audiência.
Desde o princípio, o maior erro deste Governo foi não ajustar contas com o passado, a pretexto de que não queria perder tempo com velhas querelas. Por assim dizer, apagou a responsabilidade de toda a gente que tinha levado Portugal à situação desesperada de 2011. O nosso coração é bom e muito inclinado a não tocar no sossego e no bom nome do próximo. É um coração de ouro que não gosta de afligir ninguém. E, como não gosta, os portugueses ficaram sem saber ao certo como se acumulou a enorme dívida, soberana e outra, que nos sufoca; quem deliberadamente a fez por sua própria força e autoridade; e que espécie de razões presidiram ao exercício (corrupção? oportunismo eleitoral? incompetência? puro desleixo?). A julgar pela televisão e pelos jornais parece que um castigo do Altíssimo se abateu sobre nós para nos punir de inconfessáveis pecados.
Entretanto, cai interminavelmente do céu uma chuva de números, que de resto mudam dia a dia e em que o cidadão vulgar deixou de acreditar. Durante o glorioso mandato deste Governo, os portugueses, pelo menos, conseguiram aprimorar a sua educação cívica, que se resume numa frase: não devemos confiar em nada e contar com nada. Um ministro pode perfeitamente decidir isto ou aquilo e, em meia dúzia de horas, decidir exactamente o contrário. O primeiro-ministro ora nos garante a felicidade para depois de amanhã, ora um futuro de miséria para 30 anos. Os profetas--comentadores, deliciados de se exibirem e subitamente sem excepção com uma licenciatura em Economia, discutem o extravagante dr. Gaspar, ou a iminência do apocalipse, ou a urgentíssima necessidade do "crescimento", que se tornou um fenómeno tão mítico como um unicórnio. E nós continuamos passivos no meio desta feira de inocentes, sem a menor ideia do que nos vai suceder. Mas sem queixas. Portugal é o país da impunidade.

Vasco Pulido Valente - Público

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