A TRINCHEIRA
No Verão de 2011, quando já a troika tinha passado por cá e
Passos Coelho se instalara no Governo, escrevi nesta que a reforma do
Estado seria impossível, ou quase impossível, apesar da perseverança e das
convicções que a nova direita proclamava. Por uma razão simples. Desde o
"25 de Abril" que se criara, directa ou indirectamente, uma classe
média que vivia do Estado e que não se deixaria eliminar em sossego. Na administração
central e na administração local centenas de milhares de portugueses, com
alguma educação e uma certa ambição, deviam o seu estatuto e a sua inesperada
prosperidade ao facto de pertencerem vitaliciamente ao funcionalismo público e
aos "negócios" de vária espécie, que a sua influência, grande ou
pequena, lhes permitia fazer.
Sem um sector privado a crescer com regularidade e depressa,
e que pagasse mais do que pagavam as tristes repartições do Estado, não havia
maneira de reordenar e diminuir o "monstro", que a partir de Cavaco
se criara. Nenhum governo podia pacificamente liquidar essa especial
"conquista" da revolução. Como, de resto, sucedera, com as
consequências que se conhecem, na Monarquia Constitucional e durante a
República até à ditadura de Salazar. Na ordem democrática da "Europa"
de Bruxelas, Pedro Passos Coelho estava num beco sem saída. Daí a relutância em
publicar o famoso "guião", que nunca apareceu, e suspeito que nunca
aparecerá. O "guião", mesmo por agora metido numa gaveta, é uma ameaça
para uma parte considerável do país, que provavelmente não ficaria quieto.
O veto do Tribunal Constitucional ao chamado "regime de
requalificação" não espanta ninguém com algum conhecimento da sociedade
indígena. Entre os funcionários públicos os juízes desse tribunal são de longe
os mais privilegiados (o que teoricamente se percebe). Mas também se percebe
que não estejam inclinados a autorizar uma limpeza que por baixo deles
provocaria uma instabilidade endémica e abriria um precedente perigoso para
eles próprios. Nada, portanto, mais natural e previsível que o Tribunal
Constitucional defenda o Estado como o encontrou e de que é o mais refinado e
protegido símbolo. Passos Coelho e Paulo Portas não têm razão de se queixar.
Era óbvio que a classe média do Estado, tarde ou cedo encontraria uma
trincheira. Encontrou esta.
Vasco Pulido Valente - Público
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