A RÚSSIA GANHA
A intervenção "cirúrgica" que Obama prometeu foi
felizmente comprometida pela inabilidade dele e por causa de uma coisa de que
já ninguém se lembrava, excepto para a desprezar: a opinião pública. A data
estava marcada e o plano pronto, quando Cameron e Obama descobriram, para sua
surpresa, que a Inglaterra e a América não queriam qualquer espécie de guerra.
O Parlamento paralisou Cameron; e Obama, isolado doméstica e diplomaticamente,
resolveu adquirir alguma legitimidade e pedir ao Congresso que o apoiasse, mas
logo se viu que esse apoio era duvidoso, mesmo entre os representantes do seu
próprio partido. De fora, só ficou a França, que sempre viveu entre o
autoritarismo e as revoluções. Bastou a Hollande uma discussão sem votos na
Assembleia Nacional para reafirmar uma aventura que mais de 60 por cento do
eleitorado rejeita.
A incerteza e as demoras que estas peripécias provocaram
deram à Rússia uma grande oportunidade: a oportunidade de aparecer como
intermediária entre a Síria e Obama numa situação em que o Ocidente se tinha
metido num beco sem saída. Que vantagens tira a Rússia disso? Fora o prestígio
de Estado "normal" (que anda longe de ser), mete a América, se ela
por acaso aceitar, num sarilho sem fim. A proposta de retirar ou destruir o
arsenal químico de Assad (que se calcula entre 1000 e 10.000 toneladas de gás)
é manifestamente absurda. Para começar, exige que Assad confesse onde o
escondeu, ou seja, por outras palavras, concede a Assad uma grotesca confiança.
Em segundo lugar, exige à volta de 1000 peritos, que, para se moverem em
segurança, precisam de tropas da América, da Europa e da Rússia. Em terceiro
lugar, exige dinheiro: muito dinheiro. Em quarto lugar, exige um armistício
entre as várias partes da guerra civil, que pode durar, com optimismo, quatro
ou cinco anos. Finalmente, exige o fortalecimento de Assad - como se
compreenderá, indispensável a tudo isto.
A situação agora é esta. Se as negociações entre a América e
a Rússia falharem, a Rússia acusará, como de costume, a América de imperialismo
e má-fé; e Obama ficará praticamente impedido de avançar com a sua
"intervenção cirúrgica". Se as negociações não falharem, a América
entregará sem um gesto a Síria ao sr. Putin. Mas, pior do que isso, a
incapacidade da esquerda (americana ou não) para perceber as realidades do
poder será arrasadoramente provada e a América voltará tarde ou cedo a uma
forma atenuada de isolacionismo. O que de certeza não fará bem nenhum ao mundo.
Vasco Pulido Valente - Público
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